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Visão global

Epopeia: assunto, herói(s) e estilo

- Narrativa dos feitos grandiosos de um indivíduo ou de um povo. Enquadra-se no género narrativo - é um relato de acontecimentos: o sujeito da enunciação assume-se como narrador e dispõe-se a fazer o relato de um acontecimento ou conjunto de acontecimentos a um determinado público leitor.
- Assunto de carácter excepcional. Nem todas as acções são susceptíveis de serem tratadas de forma épica; é necessário que se distanciem dos acontecimentos comuns, assumindo um carácter de excepcionalidade. Nas epopeias antigas, os feitos narrados são de carácter lendário, embora apresentem um fundo histórico. Em algumas epopeias de imitação, no entanto, o assunto é histórico
- Os eventos, excepcionais, exigem um agente, igualmente um ser de excepção, um ser que, pela sua origem, pelas suas características, se distancie, se imponha aos seus semelhantes (herói)-Pode ser individual ou colectivo. Na Ilíada e na Odisseia, escritas no século VI a.C., o herói é individual: num caso, Aquiles; no outro, Ulisses. N' Os Lusíadas o herói é, como o título indica, colectivo - o povo português. Já na Eneida de Virgílio há uma certa ambiguidade: o herói parece ser individual, Eneias, mas na realidade o objectivo do poema é exaltar o povo romano.
- Característica de todas as epopeias é a utilização de um estilo elevado, correspondente à grandiosidade do assunto, e que se traduz na selecção vocabular, na construção frásica extremamente elaborada e na abundante utilização de recursos estilísticos.

Estrutura externa 

Os Lusíadas organizam-se em dez cantos, cada um com um número variável de estrofes, no total, 1102. São oitavas de decassílabos heróicos, obedecendo ao esquema rimático "abababcc" (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos).

Estrutura interna 

Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopeia. Os Lusíadas apresentam quatro partes.

Proposição - O poeta começa por indicar aquilo que se propõe fazer, referindo de forma sucinta o assunto da sua narrativa; propõe-se cantar os navegadores que tornaram possível o império português no oriente, os reis que promoveram a expansão da fé e do império, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos.

Invocação - Dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à grandiosidade da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado,  eloquência superior; daí a necessidade do auxílio dessas entidades protectoras .

Dedicatória - O  poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. Esta parte não integrava a estrutura das epopeias antigas; trata-se de uma inovação posterior, que reflecte o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protector.

Narração - Núcleo fundamental da epopeia. O poeta procura concretizar aquilo a que se propôs na proposição.

Estrutura da narração 

A narração d' Os Lusíadas tem uma estrutura complexa. Desenvolve-se em quatro planos diferentes,  estreitamente articulados entre si.


Plano da viagem - A acção central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois,  Camões tinha já o distanciamento necessário para perceber a importância histórica desse acontecimento, pelas alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Assim, considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal,um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verosimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objectivo, por isso também, potencialmente monótono, árido. Daí que Camões tenha  recorrido à mitologia, introduzindo um segundo nível narrativo.



Plano da mitologia (conflito entre os deuses pagãos) - Camões concebeu um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio desapareça perante a glória dos portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege.
Incluiu num poema destinado a exaltar um povo cristão, os deuses pagãos.

Utilização da mitologia
1) A mera narrativa da viagem seria  monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros, de um carácter rígido e quase inumano, são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões criou um conflito externo, entre Vénus e Baco.
2) Os poemas épicos renascentistas são epopeias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida .
3) O recurso aos deuses pagãos é uma forma de o poeta engrandecer os portugueses. Nas suas intervenções, os deuses frequentemente referem-se-lhes de forma elogiosa. O  facto de a disputa entre os deuses ter como objecto os portugueses é já por si só uma forma de epicidade.

Plano da História de Portugal - O objectivo de Camões era enaltecer o povo português, não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Assim, introduziu na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem.

Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde - Ao chegar a este porto indiano, o rei recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até ao Oceano Índico, momento em que se encontravam, visto que a narrativa principal se iniciara "in media res" , quando a armada já se encontrava na costa de Moçambique.
Narrativa de Paulo da Gama ao Catual - Já em Calecute, uma personalidade hindu (Catual) visita a embarcação de Paulo da Gama, enfeitada com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O Catual pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, dando a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal.

3) Profecias - Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como factos históricos. Camões recorreu a profecias feitas por Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.
Profecia de Júpiter a Vénus - canto II;
Profecia dos rios Indo e Ganges a D. Manuel - canto IV;
Profecias do Gigante Adamastor a Vasco da Gama - canto V;
Profecias de Tétis a Vasco da Gama durante o banquete - canto X;
Profecias de Tétis no monte, frente à bola de cristal - canto X,




Plano das considerações do poeta - Por vezes, sobretudo em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de carácter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos factos narrados.
Nem só de exaltação e glorificação vivem os Lusíadas. Camões é também a consciência crítica que faz o diagnóstico lúcido e sombrio de uma decadência que se aproxima. Não desconhece nem esconde os erros, os defeitos e os crimes de tantos portugueses. No final do canto VII denuncia com mágoa a hipocrisia, o espírito de adulação, o abuso do poder, a exploração dos humildes; e queixa-se com ironia amarga da ingratidão dos contemporâneos. Camões lembra que a Cristandade atravessa um momento crítico abalada no seu interior pelas divisões religiosas motivadas pela Reforma, e ameaçada do exterior pelo poder turco que alastra da índia até à Europa Central. É justamente esta situação de enfraquecimento que a gesta dos descobrimentos vem compensar. Mas entretanto, sentimos o poeta tremer perante o perigo e perguntar: Vencemos I Somos derrotados? Nesta obra que canta a ousadia e a coragem, o medo também se diz na fala do Velho do Restelo, onde se ouve a voz do passado inquieto perante o futuro. Os Portugueses vão abandonar a segurança da Terra, a estabilidade, e lançar-se na aventura marítima, no risco do desconhecido. É esse momento que simboliza toda a despedida, o cortar das amarras.
    Mas pior do que a fala do Velho do Restelo é a conclusão da obra, terminando o canto que se reclama de «puras verdades» com uma recompensa imaginária. Enquanto toda a acção narrada se passa no plano real histórico, o prémio consiste num sonho. Um sonho maravilhoso... mas um sonho...Afinal a apoteose encerra um fundo pessimista, confessa que o poeta não acredita na recompensa real dos heróis, não confia na justiça divina. Celebra um povo, mas ao mesmo tempo revela a incapacidade que esse povo tem em saber reconhecer os seus filhos mais dignos. É esta bipolaridade, esta distância entre o épico e o anti-épico, entre o ser e o parecer que atinge o cerne da obra ou o seu equilíbrio, pondo em causa a sua finalidade épica que lhe esteve na origem.
    Tudo isto é a expressão de um mundo em crise. No renascimento português, os valores medievais, que se mantêm até muito tarde, encontram-se com os da Contra-Reforma, assumida de forma rigorosa e severa, construindo-se o poema neste universo oscilante, entre valores contraditórios.
Maria Vitalina leal de Matos, Tópicos para Uma Leitura de Os lusíadas, Editorial Verbo, Lisboa, 2003

 Surgem reflexões n´Os Lusíadas sobre:
. a insegurança e as falsidades da vida;
. o desânimo do poeta face ao desprezo dos portugueses pelas letras, e em especial pela poesia; . o valor da honra e da glória;




. a sua infelicidade;
. a crítica aos seus opressores;
. o poder do "vil metal" - ouro;
. o significado e o valor da imortalidade.
...
Estes temas tratados nas passagens mais subjetivas d’Os Lusíadas, situam-se quase sempre nos finais dos cantos :
Canto I (105-106) - Os perigos que espreitam o ser humano (o herói), tão pequeno diante das forças poderosas da natureza (tempestades, o mar, o vento...), do poder da guerra e dos traiçoeiros enganos dos inimigos.
Canto V (92-100) - O poeta lastima o desdém a que os Portugueses votam as letras. Aqueles, apesar de serem de terra de heróis, não reconhecem o valor da arte.
Canto VI (95-99) - Nestas estâncias, o Poeta realça o verdadeiro valor das honras e da glória alcançado por mérito próprio. O herói faz-se pela sua coragem e virtude, pela generosidade da sua entrega a causas desinteressadas.
Canto VII (78-93) - O poeta queixa-se da ingratidão de que é vítima. Ele que sonhava com a coroa de louros dos poetas, vê-se votado ao esquecimento e à sorte mais mesquinha, não lhe reconhecendo, os que detêm o poder, o serviço que presta à Pátria.
Canto VIII (96-99) - Faz-se, nestas estâncias, uma severa crítica; o alvo é o poder corruptor do dinheiro e do «ouro».

Canto IX (93-99) - Num tom de magistério, o poeta incita os homens a alcançarem a verdadeira glória e a fama, que não se conseguem pela cobiça, a ambição ou a tirania; mas pela justiça, a coragem e o heroísmo desinteressado.


Canto X (92-100): O poeta volta a referir-se à importância das Letras (Literatura) e desabafa que já está cansado de se dirigir a quem não quer escutar o seu canto, «gente surda e endurecida».


A epopeia termina com um epílogo (estrofes 145 a 156), em que o poeta lamenta mais uma vez as injustiças que o Reino lhe terá cometido. Reforça a dedicatória da obra ao jovem rei D. Sebastião e aproveita, como homem experiente da vida e dos conhecimentos, para lhe dar alguns conselhos: que se aconselhe com os melhores, governe com justiça, premeie apenas e sempre quem merece, lute com bravura e inteligência para expandir Portugal e a fé cristã. Deste modo, tal como Aquiles foi cantado por Homero, Camões cantará o seu rei.