https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf




O dos Castelos

A Europa é apresentada como uma figura feminina cujo rosto é Portugal – “O rosto com que fita é Portugal”.
Porém, esta figura “jaz”, está apoiada sobre os cotovelos, numa atitude de de letargia, ou de espera, vivendo das memórias de um passado, cujas raízes culturais estão associadas à Grécia, Itália e In-glaterra.
Desta atitude passiva e expectante, apenas o rosto parece estar animado de vida, já que fita, olha fixamente o Ocidente – o mar, onde a Europa se lançou através de Portugal, na aventura grandiosa das descobertas. Assim, só Portugal parece estar pronto a despertar e o seu olhar é, simultaneamente, “esfíngico e fatal”, isto é, enigmático, misterioso e marcado pelo destino.
Deste modo, o poeta destaca (ao nível do conteúdo e no aspeto formal, através da posição estratégica da palavra em final de verso, estrofe e poema) Portugal referindo-se ao seu papel como líder de uma nova Europa, cujo futuro recuperará a glória do passado. A missão de Portugal está, desde logo, assinalada pela sua localização geográfica estratégica: conquistar o que está para ocidente, o mar, criando um novo império que dará continuidade à supremacia do restante império europeu.

Demonstrativos que asseguram a coesão textual. Retomam os referentes substituindo-os respeitando a sua disposição no texto:


Este O direito
Aquele O cotovelo esquerdo
________________________________________
20 Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

21 Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiro


Luís de Camões, os Lusíadas, Canto III



“O dos Castelos” intertextualidade

Tal como neste poema de Mensagem, na estrofe 20 do canto III d’ Os Lusíadas, Camões apresenta Portugal na Europa em situação privilegiada– “quási cume da cabeça de Europa toda” – atribuindo-lhe uma missão predestinada. N’ Os Lusíadas, essa predestinação é ditada pelo “Céu” que quis que Portugal vencesse nas lutas contra os mouros.
Nos dois textos, verifica-se um forte sentimento patriótico, uma vez que o papel de Portugal na Europa é enfatizado.
No texto camoniano, este sentimento expressa-se pela forma como o poeta vê Portugal - líder da Europa (“cume da cabeça da Eu-ropa”)- e pela expressão do amor do narrador, Vasco da Gama, rela-tivamente à “ditosa pátria”, onde espera vir a morrer depois de cumprida a sua missão.
Pessoa, por sua vez, valoriza a missão de Portugal junto da ci-vilização ocidental, considerando-o o rosto que fita “O ocidente, futu-ro do passado”. É um sentimento patriótico aquele que leva Pessoa a antever a construção de um império para além do material .

“Ulisses”
Ulisses – representa a figura lendária do navegador errante, cujo espírito aventureiro permitiu que enfrentasse o mar durante longos anos, vivendo e ultrapassando inúmeros e difíceis obstáculos, até aportar na sua ilha natal, Ítaca.
É o criador mítico da cidade de Lisboa, um dos locais onde terá aportado no seu percurso de aventuras marítimas (explicação mítica da fundação de Portugal).

Na base da sua fundação está o mítico, dificilmente explicável – “O mito é o nada que é tudo”. Ulisses, “sem existir”, porque é mito, “nos bastou”, e “por não ter vindo”, porque não é real “nos criou, ou seja, foi essencial para sermos hoje o povo que somos, tendo deposi-tado nos portugueses o impulso para as navegações.
Ulisses antecipa, deste modo, o destino de um Portugal voltado para aventuras marítimas (Descobrimentos).
Embora não existindo, Ulisses aparece associado ao nascimen-to de Portugal, à cidade de Lisboa. Representa o mito que, juntamen-te com a história, dará vida a Portugal. Ele é o mito que fecunda, vivi-fica a realidade, dando sentido à vida – “A lenda se escorre a entrar na realidade/E a fecundá-la decorre”.
________________________________________
ESTRUTURA – três estrofes – tês partes

1ª estrofe/parte – apresentação de uma tese: definição de mito.
Figura de estilo dominante- oxímoro – “O mito é o nada que é tu-do” , “Vivo/morto” ; explicita a essência do mito que do nada pode passar a tudo, dependendo da força da crença e da fé .

2ª estrofe/parte- exemplificação/concretização do mito
A importância da referência a Ulisses:
- Ulisses é um herói mítico – “Este, que aqui aportou,/Foi por não ser existindo.”;
- A existência lendária deste herói não invalida a sua força cria-dora da identidade nacional – “Sem existir nos bastou./Por não ter vindo foi vindo/E nos criou.”;
- A sua ligação ao mar explica o destino marítimo dos portugue-ses;

3ª estrofe/parte – conclusão do poema, introduzida pelo conec-tor Assim (síntese da tese inicial), importância de Ulisses.
O mito – a lenda – é o nada (não existe), no entanto, pode transfor-mar-se em tudo porque se traduz em crença, fé; explica o real, fe-cundando-o: “Assim a lenda se escorre/A entrar na realidade,/E a fecundá-la decorre.”;
Na terra – “Em baixo” – a vida real e objetiva – “metade/De nada” – apaga-se quando o mito se manifesta em grandeza.

Na essência, o mito é nada quando permance latente, oculto; tudo- quando se revela.

A sua natureza reflete-se na forma do poema e até mesmo na estru-tura cíclica e mítica da Mensagem :
NADA TUDO NADA ...

Conclusão: Ulisses sendo nada, porque é mito, explica o destino ma-rítimo dos portugueses, que é tudo. É irrelevante que os heróis fun-dadores tenham ou não tido existência real, importa apenas que to-dos tenham funcionado com a força do mito que, não existindo, é tu-do.

Deíticos
Este – deítico espacial (Ulisses-fundador de Lisboa)
Aqui – deítico espacial (Lisboa)
________________________________________
D. Dinis

A prioridade deste monarca foi administrar e organizar o Rei-no português e não guerrear. Foram-lhes atribuídos os cognomes “O Lavrador” e “O Trovador”, pelo impulso que deu ao desenvolvimen-to da agricultura, pelo apreço manifestado pelas artes (poesia) e pela elevação do português como língua oficial.
Os dois primeiros versos do poema remetem para essa dupla faceta – D. Dinis “escreve um seu Cantar de Amigo” e é “plantador de naus a haver”, sendo estas naus futuras construídas com a madeira dos pinhais. D. Dinis é, assim, um rei visionário, lança a semente de futuros impérios.
Nos restantes versos, destaca-se toda uma série de vocábulos que exprimem sons, vozes, rumores, insinuações de caráter proféti-co:
“marulho obscuro”;
“fala dos pinhais”;
“o rumor dos pinhais”.
Profetizam a epopeia marítima portuguesa dos séculos XV e XVI.
D. Dinis é, então, o profeta que sabe intuir, de forma sibilina, enigmática, o grande império das descobertas. É o sonho fundador que permite a construção de um tempo futuro.

Recursos estilísticos

• Personificação – fala dos pinhais, marulho obscuro;
Sugere o caráter mítico de D. Dinis, intérprete de um de-sígnio superior- anúncio de um novo ciclo de conquistas;
• Metáfora – trigo /De império,ondulam, Arroio, plantador de naus a haver;
A origem do império está na terra, trigo, base do pão que ali-menta; pinheiros, base na construção das caravelas que ali-mentarão os Descobrimentos

• Adjetivação- jovem, puro
• Oxímoro - silêncio múrmuro
Insinuação profética e visionária (mítica: permanece latente, prestes a manifestar-se)
• Anáfora – É o som, é a voz, É o rumor
• Formas verbais
Presente do indicativo e a mitificação do herói.






D. Dinis intertextualidade Os Lusíadas


96 Eis depois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o Reino próspero florece
(Alcançada já a paz áurea divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.

97 Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do Monde-o a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se,
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.

98 Nobres vilas de novo edificou
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quase o Reino todo reformou
Com edifícios grandes, e altos muros.
Luís de Camões, Os Lusía-das, Canto III



D. Dinis não poderia deixar de figurar na Mensagem, que se ocupa sobretudo dos mitos e à qual, da História, interessa precisa-mente a matéria mítica. Nesse sentido, D. Dinis é o visionário, o ante-cipador da grande empresa de descoberta do mar desconhecido, aquele que soube escutar a voz do mar. N’Os Lusíadas, epopeia que se ocupa da matéria histórica elaborada como caminho para a cons-trução do império, da glória e do heroísmo, D. Dinis merece pouco mais de duas breves estrofes, pois ele não é um rei guerreiro e os seus feitos não são feitos de armas.


As Quinas


D. Sebastião, Rei de Portugal


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa, in Mensagem







D. Sebastião, Rei de Portugal  sistematização


Este é o primeiro dos quatro poemas dedicados a D. Sebastião. Caracte-rizando-se como um “louco” porque “quis grandeza”, D. Sebastião admite com orgulho essa loucura, símbolo do inspirado, de todo aquele que está para além do comum da sociedade e transmite a ideia de que nem a morte a extinguiu ou poderá extinguir. O “ser que houve” morreu nos areais de Alcácer Quibir; o “ser que há”, esse não é perecível, porque o sonho também não o é.
Indo mais além neste discurso de “elogio da loucura”, D. Sebastião incita aqueles que o ouvem a herdarem a sua loucura, a seguindo o seu exemplo. Tra-ta-se de uma espécie de apelo à continuidade do seu sonho de grandeza.
O poeta interroga-se , depois, sobre o que distingue o Homem dos res-tantes animais – é o sonho que permite que o Homem seja “mais que (...) cadá-ver adiado”. É o sonho que eleva o Homem e o faz superar a mediania do quo-tidiano, ultrapassar a própria morte. D. Sebastião surge, então, como uma espé-cie de messias que traz a boa nova da salvação.


Num discurso na 1ª pessoa, D. Sebastião assume-se como louco:
• A recorrência da ideia de loucura – “Louco, sim, louco”; “Minha loucura”; “Sem a loucura”;
• A loucura do rei, de sinal positivo, projeta-se no desejo de ultrapassar os limites do homem, na ousadia de transmitir o seu sonho aos outros – “Mi-nha loucura, outros que me a tomem/Com o que nela ia”.
• O jogo dos tempos verbais – “ser que houve não o que há” – exprime a di-cotomia entre o ser mortal, o D. Sebastião histórico, o corpo (que ficou no areal de Alcácer Quibir), e o ser imortal, o espírito, o D. Sebastião mítico – o sonho, o desejo de grandeza;
• Esta espécie de loucura, fecundante (que dá frutos), distingue o homem da “besta sadia,/Cadáver adiado que procria?”;
• D. Sebastião é um agente da busca de realização do sonho da Mensagem pessoana;
• D. Sebastião como figura messiânica.

















D. Sebastião, Rei de Portugal  intertextualidade


É a D. Sebastião que Camões dedica Os Lusíadas e é a este rei que o poeta dirige o apelo, no sentido de continuar a tradição dos antigos heróis portugue-ses, para fazer ressurgir a Pátria da “apagada e vil tristeza” do presente. Na Mensagem, D. Sebastião (o Sebastianismo) é o mito organizador e articulador da obra, no sentido de que ele representa, precisamente, o sonho que ressurgirá do nevoeiro em que o Portugal do presente está mergulhado, impulsionando a construção do futuro, a utopia (que é a força criadora de novos mundos, quer a nível individual, quer a nível coletivo).





O Infante


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal,
Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa, in Mensagem




Infante D. Henrique – grande impulsionador dos descobrimentos. Tendo defendido uma politica expansionista voltada para a descoberta, foi o responsável pela escola de Sagres e levou a cabo a realização de uma série de descobertas que englobam os arquipélagos dos Açores e da Madeira e a costa ocidental africana até próximo do equador.

O Infante – sistematização


No poema que abre a segunda parte de Mensagem, Pessoa recupera a fi-gura do infante D. Henrique, um herói, um dos eleitos por Deus que foi prota-gonista da vontade divina – “Deus quer” – e que cumpriu a missão para a qual foi designado – “a obra nasce”. é então reforçada, neste poema, a ideia do herói mítico, aquele que Deus manipula quase como um títere, o que obedece às suas ordens e cumpre os seus desígnios.
Essa obra foi grandiosa: a descoberta da Terra na sua totalidade e ver-dadeira forma, através da posse do mar – “E viu-se a Terra inteira, de repen-te,/Surgir, redonda, do azul profundo”.
Porém, o poeta antecipa o desfecho desventurado da saga marítima dos portugueses – povo que deu o mundo ao mundo, conquistando o mar, mas cujo império se foi progressivamente dissolvendo – “E o Império se desfez”.
O poema encerra num tom desencantado – “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” –, mas no qual se pretende a certeza de que é possível recuperar a grandeza perdida e construir um Portugal novo, fazendo alusão ao mito do Quinto Império.


O Mostrengo ESTRUTURA
TRÊS ESTROFES
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo, aparIção
Meus tetos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso. Ameaças do mostrengo
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu: superação do medo
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
D' El-rei D. João Segundo!”

Fernando Pessoa, in Mensagem
O Mostrengo – sistematização

Este poema simboliza a difícil tarefa da conquista do mar, o poeta narra o encontro – aquando da primeira passagem do cabo das Tormentas em 1488 – entre a figura horrenda do Mostrengo e o homem do leme, representante de todos os protagonistas da aventura marítima, os navegadores portugueses.
Numa relação clara de inferioridade física com o monstro marinho, o homem do leme não se deixa intimidar, e lança-lhe o seu desafio: dar cumpri-mento à vontade de D. João II.
Ao dominar o Mostrengo, o homem do leme protagoniza a vitória dos navegadores portugueses sobre todos os obstáculos que o mar oferecia: os medos e os inúmeros perigos.


Poema cuja extensão parece querer simbolizar o longo e difícil processo de conquista do mar:

• O caráter narrativo do poema;
• O caráter dramático, dialogo a três vozes: sujeito poético, Mostrengo e ho-mem do leme;
• A simbologia do Mostrengo: todos os perigos, medos e obstáculos;
• A dimensão simbólica do homem do leme: anónimo que dá voz ao sentir e à ousadia de um povo;
• O desafio do homem face aos limites da sua condição;
• A insistência no numero três e sua simbologia.


O Mostengo:
• Revela atitudes intimidatórias e ameaçadoras;
• É informe (não tem uma forma concreta);
• Está carregado de conotação negativa;
• É pouco definido, pouco descrito (não tem identidade);
• Simboliza os perigos do mar, os obstáculos, as adversidades e os medos.

O Mostrengo – intertextualidade Os Lusíadas “O Adamastor”

37 Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

38 Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
"Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

39 Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

(…)

41 E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho.
Nunca arados de estranho ou próprio lenho:

(…)

43 Sabe que quantas naus esta viagem ECO DAS PROFECIAS
Que tu fazes, fizerem de atrevidas, DO V. RESTELO
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo!

(…)

49 Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado.—
A boca e os olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

50 "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo Antarctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.

51 Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava.”

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V


Entre o Mostrengo de Mensagem e o Adamastor de Os Lusíadas há a con-siderar o facto de ambos se situarem no centro das respetivas obras, funcio-nando como eixos estruturantes (Canto V, 2ª parte Mar português).
O Mostrengo e o Adamastor surgem como símbolo dos perigos e das di-ficuldades que se apresentam ao ser humano que quer conhecer novos mun-dos. São o símbolo dos problemas a enfrentar quando se pretende explorar o desconhecido. A resistência da Natureza à aventura .
Camões procura, fundamentalmente, demonstrar que muitos dos “gigan-tes”, ou dificuldades, advêm da falta de conhecimento e do medo de correr ris-cos. O homem tem de se superar para ultrapassar os problemas com que se depara. Vencendo-se, vence os seus medos e pode descobrir o que lhe estava oculto.
A figura do Mostrengo mantém toda a simbologia do fantástico que se contava e amedrontava mesmo os mais corajosos. O poema pessoano simboliza as dificuldades sentidas pelos portugueses na conquista do mar, contrapondo o medo com a coragem do marinheiro português perante aquele ser “imundo e grosso”, vencendo os seus medos.

O Gigante Adamastor – sistematização

A exaltação do herói – por serem ditas por um ser tão temível, as palavras do Adamastor sobre a ousadia dos portugueses têm um efeito duplamente exaltan-te: aquela “gente ousada”, “mais que quantas/no mundo cometeram grandes cousas”, ignorou as interdições, ultrapassou os limites (“vedados términos”), para desvendar o desconhecido, “ver os segredos escondidos/da natureza e do húmido elemento”, o que nenhum ser, nobre o imortal, se tenha atrevido a ten-tar – é mais uma vez a conquista do conhecimento, do saber, ancorado na ob-servação, que se coloca em destaque como um dos grandes feitos da viagem.

A afirmação do herói – a coragem do herói afirma-se pelo enfrentar do medo, por ousar conhecê-lo, decifrá-lo; assim, o uso da palavra, por parte de Vasco da Gama, interrompendo as palavras ameaçadoras da monstruosa figura, a per-gunta sobre a sua identidade (“Quem és tu?”) são o momento simbólico de afirmação da grandeza do homem.

O desvendar do mito – tendo sobre os humanos a vantagem de conhecer para além do presente, o que mostra ao profetizar desgraças futuras, o gigante, no final, retira-se com um “medonho choro”, depois de ter contado a sua história. Fora, afinal, vencido no amor e na guerra, iludido e aprisionado; assim, ao tor-nar-se conhecido, desvanece-se o seu caráter ameaçador.

Simbologia do episódio – o Gigante Adamastor representa o maior de todos os obstáculos na realização de qualquer viagem, seja qual for a sua natureza – o medo do desconhecido.
Como vencer os limites paralisantes, por vezes, que a prudência impõe? Como preparar o confronto com não se sabe o quê? Com que armas se luta com o que se desconhece?
Perante o desconhecido, os navegadores enfrentaram o terror, desvendaram os seus mistérios e o desconhecido deixou de o ser. Portanto, o episódio simbo-liza a vitória sobre o medo que os perigos ignorados da natureza provocavam – em “O Mostrengo”, encontramos naturalmente a mesma intenção simbólica.

________________________________________

Mar português ENUMERAÇÃO
ANÁFO-RA(Circularidade)
De tom épico, exaltação Ó mar salgado, quanto do teu sal APÓSTROFE
do heroísmo: São lágrimas de Portugal! METÁFORA
Dor, sacrifícios que o Por te cruzarmos, quantas mães choraram, 1ª Parte
Império custou Quantos filhos em vão rezaram! FRASE
Quantas noivas ficaram por EXCLAMATIVA
Para que fosses nosso, ó mar!

Tom lírico, reflexivo Valeu a pena? Tudo vale a pena INTERROGAÇÃO RET.
acerca do heroísmo Se a alma não é pequena. AFORISMO
e da busca de Quem quer passar além do Bojador 2ª Parte
Absoluto Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, in Mensagem


FUNÇÕES SINTÁTCICAS
Deus ao mar o perigo e o abismo deu

Mar Português – sistematização


O poeta dirige-se ao mar, responsável pelo sofrimento de mães, filhos, noivas, de todos aqueles que ousaram cruzar as suas águas com o intuito de o dominarem – “para que fosses nosso, ó mar!”.
Terá valido a pena tanto sofrimento?
“Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena” – é mais uma maneira de o poeta afirmar a importância da vontade humana, sempre insaciável.
Se, na primeira estrofe (mais épica), o mar é sinónimo de dor, na se-gunda, (mais lírica, reflexiva),aparece associado à conquista do Absoluto.
O mar encerra “perigo” e “abismo”, mas também espelha o “céu”, ou seja, oferece recompensas ao permitir o acesso a um prémio superior: a TOTALI-DADE, a heroicidade, a imortalidade, a glória...


• A apóstrofe inicial marca o dramatismo, a atmosfera emotiva do poema:

• A expressividade da enumeração de todos quantos participaram na saga das Descobertas;
• A circularidade da primeira estrofe – “Ó mar (...) ó mar!”;
• A interrogação retórica a iniciar o caráter reflexivo da segunda estrofe;
• O mar - espaço de conciliação do perigo e da recompensa;
• Símbolo da conquista do absoluto, do divino;
• O sentido patriótico, de abnegação.



Mar Português – intertextualidade Os Lusía-das

89 Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.

90 Qual vai dizendo: —“Ó filho, a quem eu tinha
Só pera refrigério, e doce emparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mi te vas, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de pexes mantimento?”

91 Qual em cabelo: —"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?"


Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV


As “lágrimas de Portugal” que tornaram salgado o “mar” de Mensagem são as lágrimas choradas n’ Os Lusíadas pelas mulheres que, na praia, se despe-diram dos marinheiros que partiram na grande aventura de Vasco da Gama, nas Despedidas em Belém.

Despedidas em Belém – sistematização

Este episódio é um momento particularmente lírico da narrativa, DES-TACA os sentimentos dos que ficavam, que antecipadamente choravam a perda dos que partiam. Os marinheiros tiveram que enfrentar esse primeiro obstáculo – a dor que infligiam aos seres amados, as saudades que eles próprios já come-çavam a sentir. Antes dos heróis, em particular Vasco da Gama, vêm os mais frágeis – “mães, esposas, irmãs”, “velhos e os mininos”, os mesmos cujas lágri-mas darão sal ao mar do poema de Mensagem.
Assim, nestas estancias d’ Os Lusíadas, há um ambiente de dor e de pes-simismo provocado pela antecipação dos perigos que aqueles que partem vão enfrentar assim como as consequências para quem ficava.
Contudo, nos dois casos, a dor é encarada como um meio necessário pa-ra concretizar o sonho, alcançar o heroísmo e atingir o Absoluto.




Fernando Pessoa, in Mensagem









D. Sebastião – sistematização


Este poema, que abre a terceira parte de Mensagem, utilizando um discurso na primeira pessoa, inicia-se com um apelo do rei aos portugueses, a quem o monarca transmite a esperança de um futuro promissor. Para o rei, a “hora adversa” do presente não é mais do que o “intervalo” necessário para o inicio da realização de um grande sonho universal e eterno – “é o que eu me sonhei que eterno dura” – que ultrapassará a precariedade do momento em que o D. Sebastião histórico, aquele que desaparecer na batalha de Alcácer Qui-bir, caiu no areal.
A derrota, em Alcácer Quibir, assim, apresentada como “um mal ne-cessário” para se ultrapassar a dimensão material e efémera do império portu-guês – “o areal e a morte e a desventura” – e se começar a construir uma outra grandeza possuidora de uma dimensão espiritual e eterna, o Quinto Império, inspirado na figura do rei – “É esse que regressarei”. O rei assume-se como uma espécie de messias, um enviado de Deus – “Que Deus concede aos seus”; “Se com Deus me guardei?” –, um salvados que conduzirá o seu povo à glória eter-na.



O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa, in Mensagem

O Quinto Império – sistematização

Neste poema, pessoa assume, de forma clara e explicita, o que se já vinha anunciando ao longo de Mensagem, o futuro redentor de Portugal está indisso-ciavelmente ligado à construção de um império de características espirituais e eternas, o Quinto Império.
As primeiras três estrofes constituem uma reflexão sobre a condição humana. Partindo de afirmações provocatórias e controversas – “Triste de quem vive em casa/Contente com o seu lar” ; “Triste de quem é feliz!” –, pre-tende-se mostrar que a felicidade torna o Homem acomodado, transformando-o num ser sem sonhos, que apenas “Vive porque a vida dura” e que nada mais faz durante a sua existência do que esperar a morte – “Ter por vida a sepultu-ra”. A conclusão deste momento reflexivo é a de que ser homem passa pelo descontentamento que leva à realização de grandes obras.
Nas duas ultimas estrofes, o poeta desvenda a “chave do poema”: o de-sencanto do presente (“erma noite”) será ponto de partida para uma nova era designada como “dia claro”. Esta nova era distancia-se das glórias materiais – “Quem vem viver a verdade/Que morreu D. Sebastião?” – e apresenta-se como a continuadora das matrizes espirituais que moldaram a identidade europeia ao longo dos séculos – Grécia (a origem da civilização Ocidental), Roma (a potência que expandiu os fundamentos greco-latinos), Cristandade (a dimensão espiritu-al e humanista europeia), Europa (influencia europeia no resto do mundo, ope-rada após a renascença). Estes “quatro Tempos” tiveram o seu ciclo de vida, mas o Quinto Império, império da língua e cultura portuguesas, não só conduzi-rá Portugal a uma nova glória, como será eterna e universal.


O poema constrói-se a partir de:
• Oposições dominantes: o homem que vegeta/o homem que sonha; o ho-mem que se acomoda/o homem que ambiciona;
• Expressividade do paradoxo “Triste de quem é feliz!”
• A passagem do tempo e o descontentamento inerente à condição humana, como molas impulsionadoras do nascimento dos quatro impérios de cará-ter temporal (Grécia, Roma, Cristandade, Europa);
• A certeza da vinda de um futuro promissor – “dia claro” – já pressentido “no atro/Da erma noite”;
• O Quinto Império, de caráter transcendente e espiritual, construído por uma nova geração de homens purificados, detentores da verdade – “Quem vem viver a verdade/Que morreu D. Sebastião?”


(Terceiro)

'Screvo meu livro à beira mágoa.

Meu coração não tem que ter.

Tenho meus olhos quentes de água.

Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar

Meus dias vácuos enche e doura.

Mas quando quererás voltar?

Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo

De a quem morreu o falso Deus,

E a despertar do mal que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,

Sonho das eras português,

Tornar-me mais que o sopro incerto

De um grande anseio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando

Fazer minha esperança amor?

Da névoa e da saudade quando?

Quando, meu Sonho e meu Senhor?

Fernando Pessoa, in Mensagem



Terceiro – sistematização


Este é o único poema de Mensagem que não apresenta titulo, sendo, por esse facto, considerado como aquele em que o discurso se identifica com o próprio Pessoa.
O poema estrutura-se em torno do desencanto e da mágoa do poeta que sente os seus “dias vácuos”, o vazio que subjaz à ruína do império, e que anseia pela chegada de um messias, de um salvador, que possa restituir a Portugal a grandeza perdida – “Quando virás, Ó Encoberto,/Sonho das eras português”.
O predomínio das interrogações revela essa dor do presente e a ânsia da chegada da “Nova Terra” e dos “Novos Céus”. Atende-se, ainda, na identificação realizada pelo sujeito poético entre o sonho e a entidade divina inspiradora – “Quando, meu Sonho e meu Senhor?” – que o torna uma das forças impulsiona-doras da vontade humana.


























Terceiro – intertextualidade


145 No mais, Musa, no mais, que a lira tenho
destemperada e a voz enrouquecida,
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e na rudeza
duma austera, apagada e vil tristeza.

(...)

155 Para servir-vos, braço às armas feito,
Para cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Digna empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina.


Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto X


O final da Mensagem aproxima-se e o poeta exprime a sua tristeza e va-zio pela pátria à “beira-mágoa”. Quer anunciar a vinda do futuro, “ser mais do que o sopro incerto/De um grande anseio que Deus fez”, mas tem já “os olhos quentes de água”. Como Camões no final de Os Lusíadas, quando desalentado escreve “Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho/Destemperada e a voz en-rouquecida” e mais à frente, diz a D. Sebastião “Para servir-vos, braço às armas feito:/Para cantar-vos, mente às Musas dada”.