Fernando Pessoa
Pertenço a uma geração que ainda está por vir,
"Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim, toda essa (...) das conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira, como um som anónimo apenas.
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia virá quem o possa perceber.
Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volúpia suave de (...).
Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas coisas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas.
Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma coisa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realizá-lo quanto posso.
Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele é uma volúpia suave, como que longínqua.
Não nos entendem, bem sei...
...Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado que a inteligência desintegra e a análise estiola)."
EXPLICAÇÃO DE UM
LIVRO
"Publiquei
em Outubro passado, pus à venda, propositadamente, em 1 de Dezembro, um livro
de poemas, formando realmente um só poema, intitulado Mensagem. Foi esse livro
premiado, em condições especiais e para mim muito honrosas. pelo Secretariado
de Propaganda Nacional.
A muitos
que leram com apreço a Mensagem, assim como a muitos que o leram ou com pouco
apreço ou com nenhum, certas coisas causaram perplexidade e confusão: a
estrutura do livro, a disposicão nele das matérias, e mormente a mistura, que
ali se encontra, de um misticismo nacionalista, ordinariamente colado, onde
entre nós apareça, ao espírito e às doutrinas da Igreja de Roma, com uma
religiosidade, deste ponto de vista, nitidamente herética.
Um
fenómeno independente da Mensagem, e posterior à sua publicação, aumentou a
perplexidade de uns e outros leitores do livro. Foi esse fenómeno o meu artigo
sobre «Associações Secretas», inserto no «Diário de Lisboa», de 4 de Fevereiro
[1935]. Esse artigo é um ataque a um projecto de lei sobre o assunto do título,
e é, correlativamente, uma defesa integral da Maçonaria, contra a qual o
projecto era dirigido, e a lei hoje se dirige.
O artigo
é patentemente de um liberal, de um inimigo radical da Igreja de Roma, e de
quem tem para com a Maçonaria e os maçons um sentimento profundamente
fraternal.
Um
leitor atento de Mensagem qualquer que fosse o conceito que formasse da valia
do livro, não estranharia o anti-romanismo, constante, embora negativamente,
emergente nele. Um leitor igualmente atento, mas instruído no entendimento ou
ao menos na intuição das coisas herméticas, não estranharia a defesa da
maçonaria em o autor de um livro tão abundantemente embebido em simbolismo
templário e rosicruciano. E a este leitor seria fácil de concluir que, tendo as
ordens templárias, embora não exerçam actividade política, conceitos sociais
idênticos, no que positivos e no que negativos, aos da Maçonaria; e girando o
rosicrucianismo, no que social, em torno de ideias de fraternidade e de paz (
Pax profunda, frater! ) é a saudação rosicruciana, tanto para Irmãos como para
profanos), o autor de um livro assim seria forçosamente um liberal por
derivação, quando o não fosse já por índole.
Mas, de
facto, fui sempre fiel, por índole, e reforçada ainda por educação — a minha
educação é toda inglesa —, aos princípios essenciais do liberalismo, — que são
o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito, ou, em outras
palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma só palavra, o
individualismo fraternitário.
Há três
realidades sociais — o indivíduo, a Nação, a Humanidade. Tudo mais é factício.
São
ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a
Civilização.
O
indivíduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente
definidos. Têm contorno e forma. O indivíduo é a realidade suprema porque tem
um contorno material e mental — é um corpo vivo e uma alma viva.
A Nação
é também uma realidade, pois a definem o território, ou o idioma, ou a
continuidade histórica — um desses elementos, ou todos. O contorno da nação é
contudo mais esbatido, mais contingente, quer geograficamente, porque nem
sempre as fronteiras são as que deveriam ser; quer linguisticamente, porque
largas distâncias no espaço separam países de igual idioma e que naturalmente
deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte,
critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o
vasículo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente
sobre camadas da população, diferentes por índole, costumes ou cultura.
A
Humanidade é outra realidade social, tão forte como o indivíduo, mais forte
ainda que a Nação, porque mais definida do que ela. O indivíduo é, no fundo, um
conceito biológico; a Humanidade é, no fundo, um conceito zoológico — nem mais
nem menos do que a espécie animal, formada de todos os indivíduos de forma
humana. Uma e outra são realidades com raiz. A Nação, sendo uma realidade
social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz. O Indivíduo e a
Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade
patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos
sublimamos, ou sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens.
Segue de
aqui que, quanto mais intensamente formos patriotas — desde que saibamos ser
patriotas —, mais intensamente nos estaremos preparando, e connosco aos que
estão connosco, para um conseguimento humano futuro, que, nem que Deus o faça
impossível, deveremos deixar de ter por desejável. A Nação é a escola presente
para a super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda, e
durante séculos estaremos, na escola e só na escola.
Ser
intensamente patriota é três coisas. É, primeiro, valorizar em nós o indivíduo
que somos, e fazer o possível por que se valorizem os nossos compatriotas, para
que assim a Nação, que é a suma viva dos indivíduos que a compõem, e não o
amontoado de pedras e areia que compõem o seu território, ou a colecção de
palavras separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática —
possa orgulhar-se de nós, que, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus
pais, porque a vamos criando. (...)
*
A
verdadeira origem deste artigo está numa circunstância pessoal: o de haver
muitos — muitos para quem conhece poucos—que me confessaram não compreender
como, depois de escrever Mensagem, livro de versos nacionalista, eu tinha vindo
para o Diário de Lisboa defender a Maçonaria. Dessa circunstância pessoal e
concreta tirei a razão e a substância deste artigo impessoal e abstracto. Nada
e a ninguém importa o que faz e pensa um poeta obscuro ou o defensor (um pouco
menos obscuro) da Ordem Maçónica; mas alguma coisa e a todos deve importar que
se distinga o que estava confundido, se aproxime o que por erro estava
separado, e haja menos nevoeiro nas ideias, ainda que não seja por elas que
haja de se esperar D. Sebastião.
Uma
coisa, e uma só, me preocupa: que com este artigo eu contribua, em qualquer grau,
para estorvar os reaccionários portugueses em um dos seus maiores e mais justos
prazeres — o de dizer asneiras. Confio, porém, na solidez pétrea das suas
cabeças e nas virtudes imanentes naquela fé firme e totalitária que dividem, em
partes iguais, entre Nossa Senhora de Fátima e o senhor D. Duarte Nuno de
Bragança.
1935
Páginas
Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e
prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996. - 433.
Com quem se pode comparar Caeiro? - T
Com quem se pode comparar Caeiro? Com pouquíssimos poetas. Não, diga-se
desde já, com Cesário Verde, a quem ele se refere como se a um antepassado
literário, embora uma espécie de antepassado degenerado antecipadamente.
Cesário Verde exerceu sobre Caeiro o género de influência a que se pode chamar
apenas provocadora da inspiração, sem transmitir qualquer espécie de
inspiração. Um exemplo familiar ao leitor será a influência bem real de
Chateaubriand sobre Hugo, um homem totalmente diferente pessoal, literária e
socialmente. (. . . )
Os pouquíssimos poetas com os quais Caeiro se pode comparar, ou por
no-los fazer ou poder fazer lembrar, ou por se poder conceber que tenha sido
por eles influenciado, quer o achemos seriamente quer não, são Whitman, Francis
Jammes e Teixeira de Pascoaes.
Com quem mais se parece é com Whitman. Em alguns aspectos secundários
parece-se com Francis Jammes. Lembra-nos fortemente Pascoaes porque, sendo a
sua atitude para com a Natureza essencialmente metafísica, naturalística e
aquilo a que se pode chamar uma atitude absorta, como a de Pascoaes, no entanto
Caeiro é tudo isso mas ao invés do que Pascoaes é do mesmo modo.
PREFÁCIO
- Não encontro dificuldade em definir-me...
PREFÁCIO
(aproveitar para Shakespeare )
Não
encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma
inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela
procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de
mulher. As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a
inteligência do impulso — são de homem.
Quanto à
sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar,
tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar
reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder. Agradava-me a
passividade. De actividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não
deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.
Reconheço
sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no
espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não
tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento
não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a
sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me
humilhar. Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história
artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares,
mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito —
radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro,
e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo."
s.d.
Páginas Íntimas e de
Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por
Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 27.
Fernando Pessoa
Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. - T
"Cumpre-me
agora dizer que espécie de homem sou.
Não
importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam
respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda
a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem
pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas,
incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é
mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas»,
símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais
inteligente.
Pelas
minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha
vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas
tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico,
mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido
de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na
incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos
decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do
auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus
escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos,
extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.
Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for;
uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos
brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar
ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os
pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não
são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não
pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei
compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos
de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem,
pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo
externo.
O meu
carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos
definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos,
mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser
determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais
momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que
se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção —
enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma
difícil de conceber.
Embora
tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja
lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito,
sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de
acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço
ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu,
um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje."
1910?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.
Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e
Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 17.
Trad:
Jorge Rosa
Fernando Pessoa
"O meu livro "Mensagem"
chamava-se primitivamente "Portugal".
O meu livro "Mensagem"
chamava-se primitivamente "Portugal". Alterei o título porque o meu
velho amigo Da Cunha Dias me fez notar — a observação era por igual patriótica
e publicitária — que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos,
como a hotéis a sua maior Dinastia. «Quer V. pôr o título do seu livro em
analogia com "portugalize os seus pés?"» Concordei e cedi, como
concordo e cedo sempre que me falam com argumentos. Tenho prazer em ser vencido
quando quem me vence é a Razão, seja quem for o seu procurador.
Pus-lhe instintivamente esse título
abstracto. Substituí-o por um título concreto por uma razão...
E o curioso é que o título
"Mensagem" está mais certo — àparte a razão que me levou a pô-lo — de
que o título primitivo.
Deus fala todas as línguas, e sabe bem
que o melhor modo de fazer-se entender de um selvagem é um manipanso e não a
metafísica de Platão, base intelectual do cristianismo. Reservo-me porém o
direito de pensar que tal forma da religião é uma forma inferior. É sem dúvida necessário
que haja quem descasque batatas, mas, reconhecendo a necessidade e a utilidade
do acto descascador, dispenso-me de o considerar comparável ao de escrever a
"Ilíada". Não me dispenso porém de me abster de dizer ao descascador
que abandone a sua tarefa em proveito da de escrever hexâmetros gregos."
s.d.
Sobre
Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos
de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada
por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979. -
53.
Fernando Pessoa
1914?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.