Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber
porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir
mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um
ataque que durou muito tempo. O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a
verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe
tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e
nós ficámos de luto carregado. O mestre ainda se zangou mais comigo:
Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a
pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem
escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque
nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo:
Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou
pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a
verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas
dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade:
Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas.
Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava
vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A
boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos.
Como as meninas!
Mestre! A boneca tinha os dedos finos...
José de Almada Negreiros , Obras Completas