Síntese 40 palavras
Caeiro considera-se metaforicamente um poeta-pastor, pois
deambula pela natureza onde se integra harmoniosamente, irmanando-se em
plenitude.
Capta através dos sentidos, sobretudo do olhar, a
variedade infinita, beleza sempre renovada da natureza. Vive feliz, conforme à
ordem natural do universo.
Síntese 20 palavras
Caeiro considera-se poeta-pastor. Deambula pela
natureza onde se integra harmoniosamente, extasiado perante a beleza
irrepetível que capta através do olhar.
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro
Sensacionismo
· - Primazia do olhar, dos sentidos, sobre o pensamento.
- Rejeição do pensamento
- Poeta da visão instintiva e ingénua, entregue à infinita variedade das sensações imediatas.
· Linguagem simples, corrente e familiar. Há repetições,
frases simples, frases coordenadas e frases declarativas; predomínio de nomes
concretos, adjetivação pouco frequente.
primeira estrofe
- O deambulismo – o sujeito poético vagueia " pelas estradas, /Olhando
para a direita e para a esquerda", vendo tudo com clareza, porque o seu
"olhar é nítido como um girassol" (comparação), reparando bem: as
coisas que vê são sempre diferentes.
A comparação exprime a isenção do olhar, sensações imediatas desprovidas de qualquer reflexão, de subjetivismo.
A visão do mundo-Tal como uma criança teria "o pasmo essencial / se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras", assim o poeta fica maravilhado a cada instante porque o mundo é uma eterna novidade. Por isso, sente-se renascer em cada momento "para a eterna novidade do mundo".
A comparação exprime a isenção do olhar, sensações imediatas desprovidas de qualquer reflexão, de subjetivismo.
A visão do mundo-Tal como uma criança teria "o pasmo essencial / se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras", assim o poeta fica maravilhado a cada instante porque o mundo é uma eterna novidade. Por isso, sente-se renascer em cada momento "para a eterna novidade do mundo".
Poeta das sensações imediatas – nada acrescentam à
realidade.
Ausência de pensamento: Reflexão, juízos de valor, só deturpam as coisas e falseiam a realidade.
segunda estrofe,
Negação do pensamento:
"... pensar é não compreender...", "Eu não
tenho filosofia, tenho sentidos...","(Pensar é estar doente dos
olhos)";
A filosofia de Caeiro é a não-filosofia, recusa
o pensamento, que opõe ao "sentir".
Reafirmação do primado dos sentidos (visão).
Aceitação da ordem natural das coisas; vive em conformidade com as leis do universo: "... para olharmos para ele e estarmos de acordo".
terceira estrofe,
O poeta da natureza;
Afirmação categórica: "Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...". Esclarece a sua atitude antifilosofia, a negação da metafísica, do pensamento abstrato, defendendo em alternativa o primado dos sentidos. Os restantes versos aprofundam esta ideia, através da relação que o «eu» estabelece com a natureza, uma relação de amor ("Mas porque a amo..." - v. 21).De amor porque no amor não há perguntas, nem certezas acerca do «objeto» amado, não há «razões» que justifiquem o «amor por», nem sequer uma definição do que é amar. Ausente está o pensamento, a racionalidade; o sujeito aceita as coisas tais como são.
Vive em comunhão com a natureza, onde reside o amor;
quarta estrofe
Reafirmação do primado dos sentidos (visão).
Aceitação da ordem natural das coisas; vive em conformidade com as leis do universo: "... para olharmos para ele e estarmos de acordo".
terceira estrofe,
O poeta da natureza;
Afirmação categórica: "Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...". Esclarece a sua atitude antifilosofia, a negação da metafísica, do pensamento abstrato, defendendo em alternativa o primado dos sentidos. Os restantes versos aprofundam esta ideia, através da relação que o «eu» estabelece com a natureza, uma relação de amor ("Mas porque a amo..." - v. 21).De amor porque no amor não há perguntas, nem certezas acerca do «objeto» amado, não há «razões» que justifiquem o «amor por», nem sequer uma definição do que é amar. Ausente está o pensamento, a racionalidade; o sujeito aceita as coisas tais como são.
Vive em comunhão com a natureza, onde reside o amor;
quarta estrofe
Termina com uma espécie de conclusão lógica, um
dístico silogístico: se "amar
é a eterna inocência" (v.
24) e se "a única inocência é não pensar"
(v. 25), então "amar" é "não pensar". Neste
sentido, não pensar é uma espécie de amor , um amor ideal,um amor pela
Natureza, sinónimo de aceitação incondicional, sem problematizar.
Acerca da comparação
1-comparação ("O meu olhar é nítido como um girassol.") vê a realidade à luz do sol, com toda a nitidez que essa luz lhe propicia. A comparação evidencia a nitidez/olhar isento – a flor segue continuamente a luz solar. Como Cesário Verde, o sujeito poético assume uma atitude deambulatória ("Tenho o costume de andar pelas estradas..." - v. 2), observando atentamente a realidade, atento à diversidade que o rodeia, ("Olhando para a direita e para a esquerda..."), descobrindo novas «coisas» a cada olhar, constituindo, assim, a visão, o sentido primordial que permite conhecer o mundo.
2-Comparação- verso 9 - uma criança, um símbolo recorrente em Caeiro, pela inocência e ingenuidade que lhe estão associadas. Neste caso "ao nascer", remete para um ser não contaminado, constantemente surpreendido pelos estímulos da realidade que lhe chegam através dos sentidos e que provocam o seu espanto ("pasmo essencial" - v. 8), novidade absoluta para quem acaba de nascer. O sujeito poético sente-se como a criança recém-nascida, que vê com uma inocência primordial, como se visse pela primeira vez, espantado perante "a eterna novidade do Mundo".
Pessoa acerca dos poetas sensacionistas
Acerca da comparação
1-comparação ("O meu olhar é nítido como um girassol.") vê a realidade à luz do sol, com toda a nitidez que essa luz lhe propicia. A comparação evidencia a nitidez/olhar isento – a flor segue continuamente a luz solar. Como Cesário Verde, o sujeito poético assume uma atitude deambulatória ("Tenho o costume de andar pelas estradas..." - v. 2), observando atentamente a realidade, atento à diversidade que o rodeia, ("Olhando para a direita e para a esquerda..."), descobrindo novas «coisas» a cada olhar, constituindo, assim, a visão, o sentido primordial que permite conhecer o mundo.
2-Comparação- verso 9 - uma criança, um símbolo recorrente em Caeiro, pela inocência e ingenuidade que lhe estão associadas. Neste caso "ao nascer", remete para um ser não contaminado, constantemente surpreendido pelos estímulos da realidade que lhe chegam através dos sentidos e que provocam o seu espanto ("pasmo essencial" - v. 8), novidade absoluta para quem acaba de nascer. O sujeito poético sente-se como a criança recém-nascida, que vê com uma inocência primordial, como se visse pela primeira vez, espantado perante "a eterna novidade do Mundo".
Pessoa acerca dos poetas sensacionistas
"Se a
avaliação dos movimentos literários se deve fazer pelo que trazem de novo, não
se pode pôr em dúvida que o movimento Sensacionista português é o mais
importante da actualidade. É tão pequeno de aderentes quanto grande em beleza e
vida. Tem só três poetas e tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente,
sem querer, Cesário Verde. Fundou-o Alberto Caeiro, o mestre glorioso [...].
Tornou-o, logicamente, neoclássico o Dr. Ricardo Reis. Moderniza-o, paroxiza-o
- verdade que descrendo-o [?] e desvirtuando-o - o estranho e intenso poeta que
é Álvaro de Campos. Estes quatro - estes três nomes são todo o movimento. Mas
estes três nomes valem toda uma época literária.Cada um destes 3 poetas realiza
uma cousa que há muito se andava procurando [?] por esse tempo fora, e em vão.
Caeiro criou, de uma vez para sempre, a poesia da Natureza, a única [?] poesia
da Natureza. R. Reis encontrou enfim a fórmula neoclássica. Álvaro de Campos
revelou o que todos os [...] paroxistas [?] e modernistas vários [?] andam
há anos a querer fazer. Cada um destes poetas é supremo no seu género."
Pessoa, Fernando, «Estética, Teoria e História da
Literatura / Os Poetas Sensacionistas» in Obras de Fernando Pessoa, vol. III,
Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por
isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove
mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr
do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima
da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos
atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu
pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as
minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo
o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não
compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do
outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de
brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
8-3-1914
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a
esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de
acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o
que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é
amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
8-3-1914
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em
frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ela era um camponês
Que andava preso em liberdade pela
cidade.
mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada
por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos
campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no
campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê - eu não tinha medo -
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de
alguém...
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa
Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada
ameaça
E nem sequer de noite chega...
Há
metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os
efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a
alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar
os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem
cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no
mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de
calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os
pensamentos
De todos os filósofos e de todos os
poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem
ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não
nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
«Constituição íntima das cousas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer
dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas
dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e
pelos lados das
[árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo
escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui
estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar
para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para
elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma
missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos
ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e
sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e
montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e
sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si
próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e
árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não
conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando
acabemos!...
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no
Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande
como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste
outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a
vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso
olhar para longe
[de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos
[olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é
ver.
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se ao longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra
vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a
morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com
cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era
carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o
ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da
mãe,
E nunca tivera pai para amar com
respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou
três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse
que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo
eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que
apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e
esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães,
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em rancho pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas
flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e
doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da
eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja
Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres
cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do
outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que
faltava,
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus
verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu
sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo
apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos
os sons
São as cócegas que ele me faz,
brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um
poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para
ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta
àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros
caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
........................................................
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.........................................................
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos
sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na
realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»
«Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos
rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois - eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga.
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da
outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o
chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o
levantar-se o vento...
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não
concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente)
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa
maneira...
Devo ser todo doente - ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente
para outra cousa.
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela
estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças - tinha só que ter
rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo
branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as
rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de
um barranco.
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...
E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem «Salada», descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos
primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela
tem,
as primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos
montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem
pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha
beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por
baixo...
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...
O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de
mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha
aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que
corre pela minha
[aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela
minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá
está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha
aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos
gente,
É mais livre e maior o rio da minha
ladeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a
felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de
que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite
que fica...
Assim é e assim seja...
Como quem num dia de Verão abre a porta da casa
E
espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às
vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na
cara dos meus sentidos,
E
eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não
sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem
me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara
A
mão leve e quente da sua brisa,
Só
tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou
que sentir desagrado porque é quente,
E
de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim,
porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de
modo a ele ficar
[mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço.
Para não parecer que penso nisso...)
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se
houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria
iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma
vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele
convento
De que os poetas dizem que as estrelas
são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de
um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são
senão estrelas
Nem as flores senão flores
Sendo por isso que lhes chamamos
estrelas e flores.
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a
Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as
deixa,
Pretende que elas são mais do que
parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca
nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
13-3-1914
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade
que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
Um flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que
não existe.
Que eu dou às cousas em troca do agrado
que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são
belas?
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras
dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente
existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
11-3-1914
Só
a Natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da
linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande a terra larga,
E o nosso cotação do tamanho de um punho
fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há
sol.
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que os rios têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram
cousas vivas, não eram
[pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores,
dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos
pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só
pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por
fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era Natureza.
Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar
comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os
mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem,
tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos
nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos
homens falsos
A existência verdadeiramente real das
flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às
vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um
intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua
linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver
justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm
fome,
E dos ricos, que só têm costas para
isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu
sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu - não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos
importarmos uns com
[os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer
mal.
A nossa alma e o céu e a terra
bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser
infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos
chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os
sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os
regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com o florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa - existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e
ama?
Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do
primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou
levemente
Para ver se elas falavam...
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer
cousa
Que tem que ver com haver gente que
pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por
mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé
dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e
plantas que tem?
Se ele a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixaria de ver a Terra,
Para ver somente os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o
Céu.
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem
constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não
está!...
Quando a única casa artística é a Terra
toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a
mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem
respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em
mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para
adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol posto demora-se nas nuvens que
ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum combóio longínquo.
Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no
dia, o olham
[como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não
adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral...
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a
árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que
sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso
no que os homens
[pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa
pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as
estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que
parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm
existência.
As cousas são o único sentido oculto das
cousas.
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu
reparo
Que as borboletas não têm cor nem
movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem
cor.
A cor é que tem cor nas asas da
borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é
que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume
da flor.
A borboleta é apenas a borboleta
E a flor é apenas flor.
7-5-1914
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes
agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de
ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...
Mas graças a Deus que há imperfeição no mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o mundo
engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma
cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir...
7-5-1914
Passou a diligência pela estrada, e
foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem
sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e
esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.
7-5-1914
Antes o voo da ave, que passa e não
deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica
lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de
nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve
para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não
ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
7-5-1914
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com
paredes vagamente
[brancas.
Lá fora há um sossego como se nada
existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que
está em cima da
[minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do
céu...
Quase que me perco a pensar o que isto
significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite
com os cantos da boca,
Porque a única cousa que o meu relógio
simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite
enorme
É a curiosa sensação de encher a noite
enorme
Com a sua pequenez...
7-5-1914
Um renque de árvores lá longe, lá para a
encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há
árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são
cousas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores
absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e
longitude
Sobre a própria terra inocente e mais
verde e florida do que isso!
7-5-1914
Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com
misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem
querer,
Como se escrever não fosse uma cousa
feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me
acontecesse
Como dar-me o sol por fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que
devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar
atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o
fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
que me ensinaram,
E raspar a tinta com que pintaram os
sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções
verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto
Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza
produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem
sequer
[como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais
nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora
errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um
cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza,
Sou o Argonauta das sensações
verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a
cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos
dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
10-5-1914
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter
trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as
árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas
falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso
pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que
falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar,
achei.
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a
humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as
bocas.
Rio, o destino da minha água era não
ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar
triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela
Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água
é sempre a que
[foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas
noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das
árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro
aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem
dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio
por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
