Sebastianismo
As controvérsias sobre o Sebastianismo de Pessoa
deixam sempre no grande público, e também, afinal no que, por oposição,
teríamos que chamar «pequeno público» dos entendidos, a vaga impressão de que
nesse campo teremos que admitir, sem discutir, as convicções que às vezes
parecem de louco ou megalómano, e não são do domínio do racional. Como essa de
acreditar que o Encoberto, o Desejado, o que traria para o Império Português a
sua nova Idade de Ouro era, nem mais nem menos do que ele, Fernando Pessoa. Mas
temos que nos lembrar que a vinda do Encoberto era apenas por ele encarada
«no seu alto sentido simbólico» e não literal, como faziam os Sebastianistas
tradicionais, de quem toma distância, e que esse Desejado não seria mais do que
um «estimulador de almas». E que, mesmo assim, como ouvimos afirmar, apenas
podia «compellir cada alma a, de facto, operar a sua própria salvação». Se tudo
isto entendermos, sem esquecer que o Quinto Império era afinal «o Império
Português, subordinado ao espírito definido pela língua portuguesa», não
obedecendo nem «a fórmula política nem ideia religiosa», e que «Portugal, neste
caso, quer dizer o Brasil» também perceberemos que o projecto de Pessoa era
desmesurado, sim mas louco, não.
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Fernando Pessoa.
Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 33-34.
Quinto
Império
É evidente que Pessoa não inventou o
Sebastianismo, encontrou-o na tradição portuguesa; mas, ao adoptá-lo,
aprofundou-o e transfigurou-o. Sobretudo, uniu-o de uma forma pessoal ao outro
grande mito tradicional português, o do Quinto Império. A ideia do Quinto
Império vem de muito longe na mitologia judaico-cristã. Todos concordam em ver
a sua origem no sonho de Nabucodonosor, contado no Livro de Daniel. O rei vê em
sonhos uma estátua de dimensões prodigiosas: a cabeça é de ouro, o peito de
prata, o ventre de bronze e os pés de barro misturado com ferro. De súbito, uma
pedra bate no barro, o que faz com que toda a estátua venha abaixo; e a pedra
transforma-se numa alta montanha que cobre a terra inteira. Daniel interpreta
assim o sonho: o ouro representa o império da Babilónia, e a prata, o bronze e
o barro misturado com o ferro significam os outros três impérios que irão
suceder-lhe. Esses quatro impérios serão destruídos. A pedra que se transforma
em montanha profetiza a vinda de um Quinto Império universal, que não terá fim.
(...)
Para
Pessoa, os quatro primeiros impérios já não são os da tradição, mas os quatro
grandes momentos da civilização ocidental: a Grécia, a Roma antiga, o
Cristianismo, a Europa do Renascimento e das Luzes. Já não se fala da Assíria
nem da Pérsia, nem, aliás, do Egipto ou da China: o mundo é europeu. Mas,
sobretudo, quando fala do Império vindouro, já não se trata de todo do
exercício de um poder temporal, nem sequer espiritual, mas da irradiação do
espírito universal, reflectido nas obras dos poetas e dos artistas. Ele condena
a força armada, a conquista, a colonização, a evangelização, todas as formas de
poder. O Quinto Império será «cultural», ou não será. E se diz, como Vieira,
que o Império será português, isso significa que Portugal desempenhará um papel
determinante na difusão dessa ideia apolínea e órfica do homem que toda a sua
obra proclama. Um português como ele, homem sem qualidades, infinitamente
aberto, menos marcado que os outros, tem mais vocação para a universalidade.
Não há dúvidas de que acreditou que aquilo a que chama metaforicamente o Quinto
Império se realizaria por ele e nele; é o sentido de um texto de 1925, em que
afirma que «a segunda vinda» de D. Sebastião já se verificou, cumprindo a
profecia do Bandarra, em 1888, data que marca «o início do reino do sol».