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       Textos de Apoio – Heterónimos                                                                

    
Ricardo Reis 

Ricardo Reis nasceu no Porto. Vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Discípulo de Caeiro, Reis retoma o fascínio do mestre pela natureza pela via do Neoclassicismo. Recorre aos tópicos  clássicos do Locus Amoenus e do Carpe Diem . A sua linguagem é clássica e o vocabulário, erudito. Este heterónimo traduz o agnosticismo de Caeiro em paganismo, recorrendo aos deuses gregos. Autor de Odes, evidencia um espírito grave, medido, ansioso de perfeição.

É o heterónimo que mais se aproxima do criador, quer no aspecto físico quer na maneira de ser e no pensamento.
Reis não é um homem de ressentimento e cálculo, um homem que se faz como faz laboriosamente o estilo. Experimenta a dor da nossa miséria estrutural, sofre com as  ameaças do tempo, da velhice e da morte. Vai à conquista do prazer relativo, sempre moldado pela tristeza de saber o que é. Sente-se estrangeiro no mundo e recolhe-se com orgulho ao seu castelo interior. Assim, angustiado perante um Destino mudo que o arrasta na voragem, Reis procura na sabedoria dos antigos (gregos, romanos, etc.) um remédio para os seus males. Confessa  preferir o presente precário a um futuro que teme porque desconhece. Na poesia de Reis é constante a desconfiança perante a Fortuna, os sentimentos fortes, o prazer. Diz a sabedoria antiga que a Fortuna é traiçoeira e nada devemos esperar que não provenha de nós próprios. Assim a felicidade consiste em gozar ao de leve os instantes volúveis, buscando o mínimo de dor ou gozo. Reis, como Caeiro, é expressão abstracta de um modo de conceber e sentir a vida. É contemplativo extremamente pobre de calor afectivo, sem amizades que transpareçam na poesia, sem capacidade para o amor autêntico. Reis parece existir apenas em função de um problema, o problema crucial de remediar o sentimento da fraqueza humana e da inutilidade de agir por meio de uma arte de viver que permita chegar à morte de mãos vazias e com um mínimo de sofrimento.
 É adepto do sensacionismo, que herda do mestre Caeiro, mas ao aproximá-lo do neoclassicismo, manifesta-o num plano distinto como refere Fernando Pessoa em Páginas Íntimas e Auto Interpretação, (p.350): Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são,mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regras clássicas.
Constrói uma filosofia de vida com base na sabedoria dos Antigos, fundada no estoicismo e no epicurismo (segundo Frederico Reis a filosofia da obra de Ricardo Reis resume-se num epicurismo triste - in Páginas Íntimas e Auto Interpretação, p.386). A sua forma de expressão vai buscá-la aos poetas latinos, de acordo com a sua formação.

Álvaro de Campos            
                                                                                          

Álvaro de Campos é considerado o mais complexo, fecundo e versátil dos heterónimos de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria. Com algumas composições iniciais que algo devem ao decadentismo "Opiário", Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na "Ode Triunfal".É o único heterónimo que conhece uma evolução ("Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já não o sou").
Engenheiro naval, apresenta, na poesia, três fases evolutivas :
1ª fase- a do Opiário; decadentista
2ª fase- a Vanguarda- fase sensacionista/futurista, com influências de Whitman e Marinetti;
3ª fase- a fase intimista, do cepticismo, do sono e do cansaço existencial, marcada pela abulia e angústia existencial e pelo descontentamento de si e dos outros. 
A primeira fase, compreende o poema Opiário e dois sonetos.
 A segunda fase compõe-se dos seguintes poemas: Ode Triunfal, Dois Excertos de Odes, Ode Marítima, Saudação a Walt Whitman  Passagem das Horas e Casa Branca Nau Preta (escrito em outubro de 1916). Neste último poema, já existe uma outra atmosfera, melancólica, e de desalento, que contrasta com a euforia vital que predomina nos primeiros.
O Sensacionismo de Campos associa-se ao  mundo da Civilização, da Técnica e da Máquina, — onde as sensações humanas parecem explodir. A fase futurista-sensacionista assenta numa poesia repleta de vitalidade, manifestando a predilecção pelo ar livre e pelo belo feroz que virá contrariar a concepção aristotélica de belo ("Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos". – "Ode Triunfal".
Após a descoberta do futurismo (de Marinetti) e do sensacionismo (de Walt Whitman), Campos adoptou, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável.
"Ode Triunfal" exemplifica claramente esta fase poética do heterónimo Álvaro de campos. O título sugere logo qualquer coisa de grandioso, não só no conteúdo como na forma. A irregularidade métrica e estrófica, típicas da poesia modernista, afastam logo o poema da lírica tradicional portuguesa. Este ritmo irregular traduz a irreverência e o nervosismo do próprio poeta. A nível estilístico, sobressaem inúmeras metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas (entre outras), a fim de realçar o sensacionismo de Campos. Álvaro de Campos, além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, canta também os escândalos e corrupções da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo.
O ideal futurista em Álvaro de Campos fá-lo distanciar-se do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a consciência da sensação de poder e do triunfo.
Esta fase está também marcada pela intelectualização das sensações ou pela sua desordem. Como
A. Campos distancia-se, pois, muito do mestre ao aproximar-se de movimentos modernistas como o futurismo e o sensacionismo. Afasta-se do objectivismo do mestre e percepciona as sensações distanciando-se do objecto, centrando-se no sujeito, caindo no subjectivismo que o conduzirá à consciência do absurdo, do tédio e da desilusão.
Este heterónimo procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. Contudo, o seu sensacionismo distingue-se do seu mestre Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o pensamento. O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via com isenção e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade por estar de acordo com a Natureza; Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a violência e a força de todas as sensações ("sentir tudo de todas as maneiras").
Mais do que a euforia futurista de Marinetti (a primeira a tentar encontrar o ritmo e a atmosfera própria à civilização da máquina); mais do que a adesão à "vitalidade transbordante", ao "belo feroz" ou "à força sensual" do universo poético de Walt Whitmann , os poemas sensacionistas de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta da modernidade, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou a sua capacidade normal de apreensão, um mundo "totalmente desconhecido dos antigos".
Mas A. Campos apresenta estados evanescentes de sonolência, cansaço, desagregação subjetiva, e inapetência, apreendidos com concentração e lucidez. Homem da cidade, Álvaro de Campos desumaniza-se, ao tentar aplicar a lição sensacionista de Alberto Caeiro. Não consegue acompanhar a pressa mecanicista, e angustia-se, chegando a desabafar com o mestre  o seu desalento, a sua frustração, pois não lhe soube seguir a lição.
 Esgotava-se o sensacionismo de Álvaro de Campos.
3ª fase - caracteriza-se por uma incapacidade de realização, trazendo de volta o abatimento. O poeta vive rodeado pelo sono e pelo cansaço, revelando desilusão, revolta, inadaptação, devido à incapacidade das realizações. Após um período áureo de exaltação heróica da máquina, domina-o o  desânimo, a  frustração. Parece apresentar pontos comuns com a 1ª fase – a decadentista - , contudo, a fase intimista traduz a reflexão interior e angustiada de quem apenas sente o vazio depois da caminhada heróica. O poeta debate-se com a inexorabilidade da morte, desejando até morrer"Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer.". É notória a disforia a contrastar com a euforia das sensações. Recusa a estética, a moral, a metafísica, as ciências, as artes, a civilização moderna, apelando ao direito à solidão, apontando a infância como símbolo da felicidade perdida "Ó céu azul – o mesmo da minha infância - / Eterna verdade vazia e perfeita!".
Nesta fase, Campos sente-se vazio, inadaptado, um incompreendido "O que há em mim é sobretudo cansaço –"; "Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: / porque amo infinitamente o finito, / Porque eu desejo impossivelmente o possível.
Segundo Jacinto Prado Coelho, este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, é o único heterónimo que comparticipa da vida extraliterária de Fernando Pessoa.

Alberto Caeiro



1. Alberto Caeiro, mestre de Ricardo Reis, de Álvaro de Campos e de Pessoa é o poeta da visão ingénua, instintiva, gostosamente entregue à infinita variedade de sensações. É o poeta das sensações puras, não contaminadas pelo pensamento «a sensação é tudo ... e o pensamento uma doença» diz ele, segundo um texto de Pessoa. E este explica que por sensação entende Caeiro «a sensação das coisas tais como são sem lhes acrescentar quaisquer elementos: pensamento pessoal, convenções ou sentimentos (sensacionismo). Há, portanto, uma total identificação da sensação com o objecto que a provoca e a eliminação da subjectividade e da interpretação pessoal. «Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras / Compreendi isto com os olhos nunca com o pensamento / Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais».
Enquanto Pessoa ortónimo é «um novelo embrulhado para o lado de dentro», Caeiro «desembrulha-se em sensações», captando a realidade imediata das coisas «Eu nunca passo para além da realidade imediata / para além da realidade imediata não há nada». Tal como um pastor com o qual se identifica (pastor / guardador de sensações) gosta de deambular, de andar constantemente de um lado para o outro, absorvido pelo espectáculo da infinita variedade das coisas com o espírito concentrado numa única actividade: OLHAR.
Vive feliz, gostosamente integrado nas leis do Universo e no próprio Universo «Que eu sou qualquer coisa natural, por exemplo, a árvore antiga». Limita-se a existir. Afirma-se o poeta da Natureza, com um olhar puro, inocente, sempre aberto para a infinita variedade das coisas e rejeitando a interpretação do real pela inteligência, pois a interpretação reduz as coisas a simples conceitos vazios «Com filosofia não há árvores, há ideias apenas». Refere-se, com frequência, à negatividade do pensamento, à dor de pensar «Pensar incomoda como andar à chuva; Pensar é estar doente dos olhos». Cria, assim, a imagem de um pastor bucólico que olha o mundo com simplicidade como se tivesse acabado de nascer, construindo uma anti-filosofia (que é uma filosofia) que lhe exige «um estudo profundo/uma aprendizagem do desaprender».
Caeiro rejeita, pois, qualquer mediação intelectual, científica e metafísica; rejeita ainda a interpretação do real, a projecção do «eu» nas coisas, o transcendente, o misticismo subjectivista para tornar possível a «aparição» das coisas aos seus sentidos.
adaptado de Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, Jacinto Prado Coelho


2. Linguagem e estilo
O vocabulário é simples, natural, directo e remete para a área semântica da Natureza. A pobreza da adjectivação realça a objectividade das sensações, ajudando a construir a imagem do poeta do “imediatismo das sensações” que capta apenas a realidade das coisas. Predomina a utilização de verbos conjugados no modo indicativo e no tempo presente; no indicativo, pois este é o modo que veicula o real; no presente, porque o passado é uma abstracção e o futuro, uma ilusão. O predomínio da parataxe, para além de acentuar o fluir das sensações sem as problematizar, acentua também a simplicidade do raciocínio do poeta. O verso é livre e a métrica é irregular. O ritmo dos versos harmoniza-se com a cadência de todas as coisas naturais. 

3- Poemas 9, 2, 28 e 36 de O guardador de Rebanhos
4. Sistematização das características da poesia de Alberto Caeiro

a) Rejeição do pensamento, pois este deforma a realidade “Pensar é estar doente dos olhos”; capta o mundo com os sentidos, não com a mente, pois tentar compreender o real pela razão é não saber Ver;

b) Caeiro, poeta do OLHAR, capta as coisas como são, não lhes atribuindo significados, não as interpretando, nem projectando nelas os seus sentimentos;

c) É o poeta da objectividade, do imediatismo das sensações, pois considera que nada existe para além daquilo que é captado pelos órgãos dos sentidos “Para além da realidade imediata não há nada”;

d) Caeiro é o poeta da Natureza, integrando-se harmoniosamente nela e nas suas leis. Defende uma comunhão/irmanação com a Natureza, afirmando que o homem deve submeter-se às suas leis e não deve racionalizar processos naturais ( a ideia da Vida/Morte, por exemplo);

e) Caeiro é um poeta pagão, graças à sua crença na Natureza e total descrença no transcendente. Possui uma atitude panteísta, pois acredita que todas as coisas são divinas, isto é, que o divino se revela no mundo sensível (nas coisas, na Natureza)