Este poema de Fernando Pessoa, A. Caeiro, é uma
homenagem a Cesário Verde, poeta precursor da poesia contemporânea, inovou a
poesia não só em termos de estilo e linguagem, como pela técnica
cinematográfica e pelo deambulismo. Trouxe ainda para o universo poético o
prosaico, o banal e a temática das injustiças sociais.
A sua poesia combina realismo, naturalismo,
impressionismo, simbolismo e surrealismo. A Geração de Orpheu, em particular,
Fernando pessoa, deu-lhe continuidade. Contudo, Cesário foi incompreendido
pelos seus contemporâneos. Ramalho Ortigão, por exemplo, lançou-lhe duras
críticas quando a propósito de uma das suas publicações, o aconselhou a ser
“Mais Cesário e menos Verde”. A História , porém, veio a repor a justiça,
mostrando o valor deste jovem poeta que teve vida curta.
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, Poema III
Características temáticas da poesia de C.Verde:
Binómio cidade/campo,
cidade - um espaço de morte, castrador, que oprime e aprisiona, símbolo de morte, da humilhação, da doença. Em oposição, o campo surge como um espaço associado à vida e à saúde – valorização do natural em detrimento do artificial. É ainda um espaço de liberdade, do não isolamento.
A esta oposição associam-se as oposições belo/feio, claro/escuro, força/fragilidade.
Oposição passado/presente, em que o passado é visto como um tempo de harmonia
com a natureza, ao contrário de um presente de decadência, contaminado pelos malefícios da cidade
(ex: «Nós»).
A questão da inviabilidade do Amor na cidade.
A humilhação (sentimental, estética, social).
A preocupação com as injustiças sociais.
O sentimento anti-burguês.
O perpétuo fluir do tempo, que só trará esperança para as gerações futuras.
A esta oposição associam-se as oposições belo/feio, claro/escuro, força/fragilidade.
Oposição passado/presente, em que o passado é visto como um tempo de harmonia
com a natureza, ao contrário de um presente de decadência, contaminado pelos malefícios da cidade
(ex: «Nós»).
A questão da inviabilidade do Amor na cidade.
A humilhação (sentimental, estética, social).
A preocupação com as injustiças sociais.
O sentimento anti-burguês.
O perpétuo fluir do tempo, que só trará esperança para as gerações futuras.
“AO GÁS”
E saio. A noite pesa, esmaga.
Nos 1
Passeios de lajedo arrastam-se as
impuras.
Ó moles hospitais! Sai das
embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros
quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso 2
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores,
ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento
imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
3
Resvalam pelo chão minado pelos
canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos
pianos,
As freiras que os jejuns matavam
de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno, 4
Um forjador maneja um malho,
rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda
quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão
no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe, 5
Quisera que o real e a análise mo
dessem;
Casas de confeções e modas
resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro
imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
6
Com versos magistrais, salubres e
sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e
lunar!
|
Que grande cobra, a lúbrica
pessoa, 7
Que espartilhada escolhe uns xales
com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética,
entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno
se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
8
A sua traîne imita um leque antigo,
aberto,
Nas barras verticais, a duas
tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus
mecklemburgueses
(…)
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
10
Os candelabros, como estrelas,
pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro
rouco;
Tornam-se mausoléus as armações
fulgentes.
<
E, nas esquinas, calvo, eterno,
sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho
idoso,
Meu velho
professor nas aulas de Latim!.
Noite
Fechada
|
A
- Nas primeiras quatro estrofes: Indicar,
justificando com citações textuais a explicar, os sentimentos que a cidade
provoca no poeta.
O sujeito
poético continua a sentir-se um estranho
na cidade:
Opressão/enclausuramento
crescente
Visão surrealista,
alucinatória
Honestidade e saúde
na cidade?
1-
As primeiras quatro estrofes documentam a opressão que
a cidade provoca no poeta. Aquilo que em «Ave-Marias» era «um desejo «absurdo
de sofrer» é agora um sentimento que invadiu o
físico: «A noite …esmaga»; a aragem «arrepia os ombros» ., quer pelos
tipos que povoam a cidade-» Ó moles
hospitais»-, quer pela cidade fisicamente considerada. E é como se a cidade se transformasse num corpo vivo, para o atacar - «Cercam-me as lojas», diz o poeta.
2-
Este sentimento é de tal modo agudo e
penetrante que o sujeito apresenta uma visão surrealista das ruas com as lojas
iluminadas a lembrarem capelas; passa a ter
«alucinações: «Eu penso / Ver círios laterais…» , lembram-lhe «As freiras que os jejuns matavam de
histerismo».
3-
Parece que. na cidade , apenas o que nela
lhe faz lembrar o campo pode provocar algum sentimento de honestidade e
reação de saúde., como se pode constatar nos versos 15 e 16.
B Interpretar, justificando, o ponto de vista
expresso pelo poeta sobre a sua arte, nas estrofes 5 e 6.
A
poesia como forma de intervenção social.
Estrofe 5: realismo/naturalismo
Estrofe 6: expressão de um desejo que se afasta um pouco dos
moldes do realismo/naturalismo
1-
O poeta vê os seus poemas como forma de
intervenção social, que leve os leitores a pensar. Estrofe cinco apresenta
um programa quase naturalista: medita num «livro que exacerbe», com base no
«real» e na análise, refletindo, portanto,
sobre esse mesmo real- o que as estrofes seguintes e anteriores
comprovam.
2-
Estrofe 6- exprime um desejo que sai um pouco dos moldes do realismo e do
naturalismo: a aproximação dos seus
poemas à pintura, mas, neste caso, ao impressionismo e aos jogos de luz visíveis
nas «Longas descidas», que lhe parecem difíceis de conseguir. Estamos, pois, perante duas estrofes
metalinguísticas, em que o poeta constata como será difícil substituir a poesia
do épico pela sua própria.
C Estrofes 7 a 11. Indicar e caracterizar os tipos
sociais.
Contraste entre os tipos sociais.
As últimas estrofes apresentam o ponto mais alto da crítica social ,
sobretudo pelo contraste entre os tipos
sociais apresentados.
O sujeito deambulando pela cidade «Ao gás» , regista
dois tipos de burguesas ricas, no interior de uma loja a escolher xales ricos; a outra de
vestido de cauda, com caleche própria que a espera. A tudo isto, contrapõe o poeta um «cauteleiro rouco» e, apesar do avançado da hora, o professor de
latim que pede esmola.
O luxo do espaço anterior transfigura-se num enorme mausoléu :« Tornam-se
mausoléus as armações fulgentes».
“HORAS MORTAS”
Momento
final do percurso do sujeito poético, progressivamente angustiante e fechado.
Noite
cerrada, as estrelas brilham no céu - "Vêm
lágrimas de luz dos astros com olheiras" - e "os guardas, que
revistam … / caminham de lanterna (...)". – nova transfiguração surrealista, alucinatória.
- personagens marginais
movimentam-se na cidade:
- as
"imorais"
- os assassinos
- os "tristes bebedores"
- os
"dúbios caminhantes"
- e até os cães, que se transformam em lobos - "E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente, os cães parecem lobos". – impressionismo.
O
espaço torna-se ameaçador,
opressivo, agressivo para o sujeito poético:
- o
colocar dos taipais e o ranger das fechaduras;
- a
consciência de que a cidade é uma prisão, uma antecâmara da morte -
"Mas se vivemos, os emparedados. / Sem árvores, no vale escuro das
muralhas!..."; "prédios sepulcrais";
- a náusea face à cidade - "Nauseiam-me (...) os ventres das tabernas".
Perante
esta cidade que descreve, opressiva, o sujeito poético:
-
evoca a beleza e a serenidade do campo -
"Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / as notas pastoris de uma
longínqua flauta";
- exprime desejos impossíveis, de
difícil concretização - "Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e
conseguisse a perfeição das cousas!";
- desejo de recuperar a grandeza
perdida - "Nós vamos explorar todos os
continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!"
- O poema termina em tom acentuadamente disfórico, negativo: a cidade é o espaço onde "A Dor humana busca os
amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!".
Num Bairro
Moderno- aspetos gerais e estrutura
Tempo: dez horas da manhã.
Espaço: num bairro moderno burguês lisboeta.
Personagens/narração/descrição:” eu descia, sem muita pressa, para o meu emprego; “E
rota, pequenina, azafamada, notei de costas uma rapariga.”- o sujeito poético,
a vendedeira
episódio do criado: desdém e arrogância com que atira um cobre Iívido,
oxidado", símbolo de quem ele serve-burguesia
Na estrofe 15: fuga ao romantismo.
Estrutura:
- 1.ª parte: 1.ª e 3.ª estrofes: relação de oposição entre o
sujeito poético que se dirige ao emprego e o bairro que ainda dorme;
- 2.ª parte: 4.ª e 6.ª estrofes: entrada da vendedeira de
fruta e hortaliça, que desperta no sujeito sentimentos de simpatia e
solidariedade;
- 3.º parte: 7.ª e 12.ª estrofes: transfiguração dos frutos
e hortaliças da giga da vendedeira num corpo humano; (feminino, a
terra-mãe, associado ao campo por oposição à cidade)
- 4.ª parte: 13.ª e 20.ª estrofes: o sujeito poético,
desperto pelo pedido de ajuda da vendedeira vai dispersar-se pela observação
do mundo à sua volta.
Características temáticas/estilísticas
- descrição
objetiva do real;
- Denúncia das desigualdades sociais: Solariedade para com os desfavorecidos, os trabalhadores (neste caso, a rapariga que luta para sobreviver enquanto no Bairro burguês, luxuoso e cheio de conforto, sò às dez horas da manhã o bairro acorda…);
- Denúncia das desigualdades sociais: Solariedade para com os desfavorecidos, os trabalhadores (neste caso, a rapariga que luta para sobreviver enquanto no Bairro burguês, luxuoso e cheio de conforto, sò às dez horas da manhã o bairro acorda…);
- caráter
deambulatório; ( o poema vai surgindo ao ritmo da deambulação, à medida que se
desloca para o emprego vai registando as impressões do quotidiano lisboeta,
apresentando pequenos quadros pictóricos- há pessoas, paisagem, ruas,cores…)
- aspecto
cinético e visualismo ( o poeta faz a apresentação de aspectos genéricos e
globalizantes, descendo depois aos aspectos particulares que descreve
pormenorizadamente) obedecendo assim, ao código realista
- aspecto
pictórico: influência dos movimentos e técnicas pictóricas da época (Realismo e
Impressionismo);nomeadamente da pintura .O impressionismo tira partido da luz,
da cor e do movimento (ver exemplos de quadros de Manet, Monet ou Renoir)
-presença do quotidiano citadino e campestre;
-binómio:cidade/campo (morte, tristeza, doença,
infelicidade, prisão e sombra/vida pureza, felicidade, saúde, alegria,
liberdade, luz)
-nova imagem da mulher: a mulher do povo, sofredora e
doente («Contrariedades» e «Num Bairro Moderno»)
O jogo do real/irreal; objectividade/subjectividade : as fugas imaginativas
O jogo do real/irreal; objectividade/subjectividade : as fugas imaginativas
O surrealismo (a transfiguração da realidade,
ex; os legumes e frutos da vendedeira transformam-se num corpo humano: os nabos
são ossos, o tomate, coração; o melão lembra um ventre; etc… ver as analogias)
-Poetização do real
-Originalidade na linguagem, no estilo e
na concepção de poesia. Cesário dá estatuto poético a objectos, coisas comuns, realidades prosaicas, aparentemente banais- até então só a beleza e a harmonia cabiam na poesia.
na concepção de poesia. Cesário dá estatuto poético a objectos, coisas comuns, realidades prosaicas, aparentemente banais- até então só a beleza e a harmonia cabiam na poesia.
3. A Linguagem
-vocabulário preciso, conciso e pragmático;
-estrangeirismos
-valor expressivo dos diminutivos;
-uso das figuras de estilo sinestesia (ex, brancuras
quentes) e hipálage(um cobre ignóbil; ignóbil será o burguês, o criado burguês,
não a moeda em si)
- O estilo impressionista. O poeta valoriza a cor,
a luz e o movimento. Apresenta-nos em destaque as impressões dadas pelas cores,
luz ou movimento em primeiro lugar e só depois, surge o objecto ou a figura que
pretende apresentar.Exemplos disso neste poema é a descrição da vendedeira. Em
primeiro lugar aparecem as características, as impressões “E rota, pequenina,
azafamada/notei de costas uma rapariga”, a identificação do sujeito a quem
atrbui os aspectos de pobreza, desembaraço e fragilidade, aparece depois das
características, à maneira impressionista
Cristalizações
Até à estrofe 12 o sujeito apresenta
uma posição neutra face aos tipos
Uma sequência- visão global- os calceteiros / calçam; análise pequenos grupos: partem penedos/batem a calçada/descalçam /
valadores atiram terra /conduzem saibros
Valor
do presente ? – descritivo
Uma posição
naturalista face ao real , estimulado pelo frio, pelo clima - estrofe 11 .
Mas esse momento, alto de estímulo , coincide com a expressão das
sensações otimistas em termos campestres ….
Na evolução do seu deambular pela cidade , « enquanto eu passo » – estrofe 12-, ARTICULANDO NARRAÇÃO / DESCRIÇÃO E COMENTÁRIO,
identifica :
a diferença
que existe entre o sujeito que deambula e , dentro do grupo dos calceteiros, o mestre e os outros
Um para
Mal encarado e negro
Posição do adjetivo
Ameaça ?
|
Dois assobiam ,
Altas as marretas , possantes grossas , temperadas de aço –
modificador verbal
Ameaça ?
|
Um –o mestre – tira o nível da valetas
Com um ar ralaço e manso
|
A sua consciência social foi alertada pela presença dos conflitos
latentes? Pela sugestão do campo? Porque os seus sentidos estão todos
estimulados?
É que se seguem
comentários do poeta completamente opostos aos constantes da estrofe 10: frases
exclamativas e nominais, interjeições, metáforas bestializantes, exprimem a sua
compaixão humana. O que continua na estrofe seguinte, transfigurando as camisas
em «bandeiras» , onde o vinho faz listas
e os suspensórios uma cruz: faz, assim,
uma caracterização dos trabalhadores como verdadeiros Cristos.
E , eis que um novo
tipo surge e se geram um conjunto de
emoções
A atriz – descrição
Tipo de frase . aspetos pejorativos
Aspetos de classe -
|
Comentário – sujeito poético sobre
: A atriz – narração
os tipos – são todos do
campo - a atriz
|
Os calceteiros - >olham-na
animalescamente - ela vacila –
atravessa – >Demonico – pé de cabra
|
São claros três
tipos sociais: dois pequeno-burgueses // os trabalhadores - proletários
o conflito/
ameaça entre os calceteiros e a atriz; o
escritor , embora pertença à mesma classe – estrofe 16 - decide-se pelos trabalhadores.
De notar
ainda neste poema: movimento da descrição ; sensações : luz >>>
impressionismo
A sugestão
do campo – na sua ausência – na interpretação do bem estar com sensações
resultantes do campo // na exploração do campo pela cidade- os calceteiros são
todos do campo .
Finalmente,
nas estrofes x e y, o poeta transfigura o real as árvores, os charcos as
camisas dos calceteiros.
"Deslumbramentos"
Estrutura interna
Relação de subserviência
A-
quatro partes distintas: a primeira, constiuída pelas quatro
estrofes iniciais, é a confissão do fascínio que Milady exerce
sobre o "eu" lírico ; a segunda,
constituída pelas duas estrofes seguintes- encontro entre o sujeito poético
e Milady; as duas estrofes seguintes compõem a terceira parte- o sujeito lírico resignado à atitude altiva e
orgulhosa da mulher revelada nesse encontro; as restantes estrofes constituem a
quarta parte- o sujeito poético
alerta Milady para os perigos das suas atitudes: orgulho e
altivez podem voltar-se contra ela.
B-
O poema inicia-se com uma apóstrofe - Milady.
dirigida a uma mulher aristocrática, de um estatuto social superior. Se esta é
a mulher amada do sujeito poético e ele a trata como Milady,
estamos perante uma relação de subserviência , encontrando-se ela num plano
superior, aristocrático, e ele num plano inferior, servil.
Caracterização da mulher /efeitos no Eu lírico "é perigoso contemplá-la, / Quando passa
aromática e normal". ?
1-
Fisicamente, Milady - bela,
perfeita, fascinante, sensual. Seduz e encanta o sujeito poético
que fica extático à sua passagem.
2 -
Fria, insensível, indiferente . A sua
postura altiva e solene fere-o,
humilhado pela indiferença que ela revela à
sua passagem. Milady trata com desprezo todos aqueles que se
submetem ao seu poder sedutor.
? A paixão despertada por essa contemplação leva ao
sofrimento, à humilhação de se sentir ignorado . O sujeito lírico fica marcado
pela atitude de desprezo e altivez desta mulher que o ignora.
Milady surge
"Britânica", altiva, "com firmeza e música no andar!" Mas a
"Grande dama fatal", que mata quem
por ela se apaixona, aparece "sempre sozinha", de coração frio,
insensível , não se entrega a ninguém.
3-
O seu olhar
é caracterizado de forma antagónica,
pois seduz, encanta com a sua beleza angelical, conforta como um regalo, Todavia,
fere, magoa, destrói.
Resignação face à postura de Milady
Ironia do suj. Poético: para que
mantenha como seu companheiro "o gelo", a frieza e a insensibilidade
.
Milady comparada à
imperatriz Ana de Aústria, pelosa postura diplomática e orgulhosa, e à Fama,
altiva, sem sorrisos, dramática (teatral) e cortante.
É esta postura altiva que humilha,
fere o sujeito lírico. Mas, movido pela fixação amorosa , o "eu" continuará,
embora sabendo que em vão, a tentar fundir o seu coração na chama do amor.
"Fundir" verbo com sentido
metafórico, remete para o quebrar, derreter
do gelo .
Apesar de não
ignorado por Milady -, ele afirma, na oitava estrofe,
que procurará fundir o seu coração gélido na chama da sua paixão: Subjugando-se
às disposições desta mulher:
- beijando-lhe as mãos, numa
atitude de subserviência, ou seguindo-a pelas ruas de Lisboa, como se de um
servo se tratasse.
Por estes motivos é que é perigoso contemplar Milady.
esta "Grande dama" revela-se
"fatal" , pois a sua beleza atrai de forma obsessiva, mas a sua
frigidez devora, mata aqueles que por ela se apaixonam.
4- Nos duas últimas estrofes- aviso a Milady. deve
ter cuidado e não se entusiasmar com esta sua condição de rainha, associada a um poder absolutista sobre os homens.
Adverte-a: o seu poder advém de algo passageiro, efémero- a sua beleza. Esta
sua condição de rainha não é eterna: os seus poderes vão acabar um dia e os
povos humilhados - os apaixonados desprezados -, na sombra da sua beleza,
"Para a vingança aguçam os punhais."
vingança?
5- quando esta "flor de
Luxo" perder os seus poderes encantatórios e vaguear pelas ruas , ser-lhe-á
retribuido o mesmo desprezo que ela agora mostra para com aqueles que por ela
se apaixonam.
6- crítica social: o poeta gostaria de ver aqueles desprezam as
classes sociais inferiores a arrastarem farrapos pelas ruas, abandonados, para
que experimentassem um pouco do veneno que servem àqueles que trabalham
diariamente e são tratados com repugnância e vileza. Deseja ver as condições
sociais alteradas, para que aqueles que labutam diariamente pudessem ver
recompensado o seu esforço, e aqueles que vivem às custas do trabalho alheio
fossem punidos pelo seu parasitismo.
A visão da mulher
Há, na poesia de Cesário, dois
tipos de mulher, associados aos locais em que se movimentam.
Cidade- a mulher citadina, não
obstante a sua beleza, é frívola, calculista, destrutiva, dominadora,
sem sentimentos.
- A sensualidade da mulher citadina
surge em imagens antitéticas, em oposição à mulher campesina.
- mulher fatal, humilhante, que
reduz o amante à condição de presa fácil;
personifica o artificialismo da cidade.
Em contraste com esta mulher
predadora, surge um outro tipo feminino ( "A Débil", que é o oposto das
frígidas, aristocráticas, presentes em "Deslumbramentos" e
"Vaidosa").
- Trata-se de uma mulher frágil, terna, ingénua e despretensiosa,
mesmo quando enquadrada na cidade, como é o caso da retratada em "A
Débil",
- desperta no poeta o desejo de
proteção e estima, mas não o de se prostrar a seus pés ; os seus atos são
ingénuos e o despretensiosismo só poderá
relacionar-se com a mulher do campo, capaz de oferecer o amor e a vida
inerentes ao espaço rural.
Assim, tendo em conta o que foi
dito atrás, há mais duas dicotomias em Cesário:
Dualidades
a mulher fatal/a mulher angélica
(associadas à cidade e ao campo respetivamente);
morte/ vida, dualidades que parecem percorrer
toda a obra de Cesário Verde. Segundo Hélder Macedo, são a raiz estruturante de
toda a obra.
Margarida Mendes, considera que a
obra de Cesário pode ser "vista como uma série de dualidades imbricadas
umas nas outras e derivadas da fundamental oposição cidade/campo: do lado da cidade, a humilhação sexual, a
noite, o confinamento, a morte, a doença, o presente; do lado do campo, a libertação amorosa, a saúde, a vida, o passado
infantil. Em "Nós" essa dualidade estender-se-ia à oposição
sociedades industriais/sociedades rurais e também
proprietários/trabalhadores".
O Sentimento dum Ocidental
I Avé Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal
melancolia,
Que as sombras, o bulício, o
Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo
de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me,
perturba;
E os edifícios, com as
chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e
londrina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se
vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista,
exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S.
Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente
emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das
badaladas,
Saltam de viga em viga os
mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro,
enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por
boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se
atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo
ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando
um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu
não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam
os escaleres;
E em terra num tinir de louças
e talheres
Flamejam, ao jantar alguns
hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas
andas;
Os querubins do lar flutuam
nas varandas;
Às portas, em cabelo,
enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio,
apressam-se as obreiras;
E num cardume negro,
hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam
as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis
recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam
nas canastras
Os filhos que depois naufragam
nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo
das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde
miam gatas,
E o peixe podre gera os focos
de infeção!
II Noite Fechada
Toca-se às grades, nas cadeias.
Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <>!
E eu desconfio, até, de um
aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os
andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e
vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a
Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me
avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as
floristas
Descem dos magasins, causam-me
sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de
emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
III Ao Gás
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo
arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das
embocaduras
Um sopro que arrepia os
ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver
filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores,
ramos, velas,
Em uma catedral de um
comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado
pelos canos;
E lembram-me, ao chorar
doente dos pianos,
As freiras que os jejuns
matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho,
rubramente;
E de uma padaria exala-se,
inda quente,
Um cheiro salutar e honesto
a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a
análise mo dessem;
Casas de confeções e modas
resplandecem;
Pelas vitrines olha um
ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais,
salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos
reverberos,
E a vossa palidez romântica
e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns
xales com debuxo!
Sua excelência atrai,
magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de
mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque
antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas
tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus
mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam
nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz
pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins
requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como
estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um
cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as
armações fulgentes.
<>
E, nas esquinas, calvo,
eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho
idoso,
Meu velho professor nas
aulas de Latim!
IV
Horas Mortas
O teto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao
meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos
astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de
transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes,
às escuras:
Colocam-se taipais, rangem
as fechaduras,
E os olhos dum caleche
espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta
das fachadas;
Pois sobem, no silêncio,
infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma
longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a
perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever
castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de
vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a
nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e
irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas
e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do
porvir,
E as frotas dos avós, e os
nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os
continentes
E pelas vastidões aquáticas
seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro
das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as
folhas das navalhas
E os gritos de socorro
ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os
ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos
bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns
tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os
dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos,
febris, errantes,
Amareladamente, os cães
parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e
servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos
seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a
pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com
dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos
horizontes,
E tem marés, de fel, como um
sinistro mar!
Cesário Verde